quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

SAQUE HISTÓRICO

Amigos estão finalizando um livro sobre História da África – aguardem -, e têm um problema: imagens. Usar em seu livro a foto, por exemplo, de uma figura Nok (Nigéria, 500 aC), é pagar uma fortuna a marchands que não hesitam em misturar o milenar ao envelhecido.
A Europa enfeitou museus e praças, por séculos, com objetos exóticos – leia-se arrancados de seus lugares e seus donos. O saque oficial, ao menos, foi contido – hoje, na guerra, se destrói, não se carrega -, mas o mercado é... incontível.
Bens arqueológicos importantes saem facilmente, misturados a similares recentes, de muitos dos países africanos, cujos governantes ou não conseguem ou não querem muito mesmo estancar a sangria. Tornam-se, as peças e suas imagens, então posse e objeto de ganho de alguém que nada tem a ver com elas, não sabe, às vezes, o que são, para que servem, expõe na sua sala o que foi feito para ser largado bem longe de casa.
A história de muitos povos africanos se conta de memória ou pelas obras. O acesso livre às imagens – pelo menos – dessas obras é direito desses povos e de todos os humanos. Mas, o mercado internacional de arte não vive só de bichos no formol, também vai de história roubada.



 zona de conforto

é

 puteiro chique

?

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012



Circe

No conto de Cortázar, a Circe é Délia, que fica noiva pela terceira vez; os outros noivos morreram - enfartou, suicidou. Ela matou-os, diz a vizinhança, porém Mário despreza tais boatos e a namora. A paixão, entretanto, não o faz surdo nem cego e, quando, oficialmente noivos e a sós, Délia pede que ele prove um bombom de sua lavra, antes de morder ele o quebra e, misturados com menta e maçapão, há pedaços de uma barata.
Bombons com mau recheio existem desde antes da invenção do chocolate – vide Adão. De nosso edênico ancestral, não se poderia esperar que desconfiasse de coisa nenhuma; seu sacrifício ensinou-nos (ou deveria) a não ser tão inocentes.
A mídia servil ao capital oferece em abundância quitutes venenosos, a gordura adocicada da futilidade a entupir os neurônios, o salitre da descrença a reduzir o inconformismo à impotência, aromas de respeito à individualidade disfarçando a toxina do cada-um-por-si, ou puritanismo fastifúdi com ovos da tênia fascista.
Não aceite doces de desconhecidos, diziam nossas mães ou avós; palavras sábias, insuficientes. Há gente conhecida de cujas mãos não devemos morder nada sem abrir, olhar, cheirar primeiro. Brincar de fecha-os-olhos-e-abre-a-boca com a Mídia S.A. é como beijar os anéis de Calígula.
Mário enxergou a tempo no rosto lindo da noiva os traços da Circe; tinha os olhos abertos pela história. A nós também ela diz de quem podemos esperar delícias venenosas; quem a ouve não bebe de primeira na taça da Lucrécia Mídia.